sexta-feira, 20 de agosto de 2010

De sol a sol

Em São Tomé tudo acontece cedo. As meninas ficam “de barriga cheia” cedo, a chuva chega cedo, as crianças abandonam a escola cedo e o dia começa MUITO cedo. Às 5 da matina já há reboliço pelas ruas da maior cidade do distrito, pouco maior do que qualquer aldeia do interior de Portugal. As crianças já apanham água na fonte, os cães já ladram incessantemente, as janelas e os tachos já batem em casa dos vizinhos e já se berra pelas ruas como se o sol estivesse combinado com as gentes para não nos deixar dormir depois das 6 ou 7 da manhã.

Todos os dias, depois de um doloroso ritual de início de dia, cada um parte para os seus afazeres.

A Inês Caeiro e a Inês Alencoão passam as manhãs nos centros de saúde do distrito, quatro ao todo. Entre conversas com aqueles a quem a solidão dói bem mais do que a doença e formações sobre maternidade ou cuidados de saúde, têm tempo para perceber a realidade dos enfermeiros e médicos. Os últimos, ainda mais escassos no país do que a água, formaram-se maioritariamente em Portugal e Angola. Já aos enfermeiros basta um curso de três anos tirado cá que, ainda que não seja reconhecido em nenhum outro país, aqui lhes permite passar receitas, fazer tratamentos, limpezas e o que mais for preciso.

O Zé Luís e eu caminhamos todos os dias para a escola secundária de Guadalupe, onde os professores nos olham de lado e pedem licença ao corpo para nos responder a alguma pergunta ou dar a chave das salas onde damos explicações de português e matemática a oito crianças. Estas meninas e meninos tentam preparar-se para entrar no 7º ano do IDF (Instituto Diocesano de Formação). Esta escola, com o currículo português, é bem mais exigente e abre bem mais oportunidades do que a escola são tomense. Nesta última, as turmas chegam a ter 60 alunos, ainda se dá uso à vara e à régua e pode-se tirar o curso de professor com o 8º ou 9º ano de escolaridade, o que corresponde, segundo alguns, a um 6º ano português. As lacunas, em algumas crianças, são maiores do que se possa imaginar num grande exercício de imaginação. Em outras, sente-se uma forte vontade de aprender e de um dia poder ser “proféssô” ou “doutorr”. Só por estes, mesmo que sejam um ou dois, já vale muito a pena passar vários minutos a explicar que 4x2 não são 7. O Zé Luís, disléxico desde novo, dá aulas de Português. Na sua sala, já vi as crianças a rir a bandeiras despregadas e a chorar ofendidas com os seus berros. Eu dou de Matemática, tentando manter o sorriso mesmo quando uma criança do suposto 6º ano me desenha um triângulo em vez de um rectângulo e responde incessantemente que 3 a dividir por 1 é 1.

O Mário é o nosso homem dos sete ofícios. Entre aulas de guitarra aos jovens, preparação das actividades da tarde e planeamento dos campos de férias, as suas manhãs passam-se ora em casa, ora pelas ruas de Guadalupe, ora em reuniões no edifício da ONU na capital.

As tardes, ocupamo-las no ATL e nas roças.

O ATL é especialmente importante para ensinar às crianças, que crescem e vivem a maioria do seu dia na rua, regras tão simples quanto a formação de uma fila ou a espera da sua vez para falar. Entre uma regra e outra, é bom ver a felicidade dos 30 ou 40 miúdos quando os pomos a imaginar o seu futuro num papel ou a ver a sua cidade com novos olhos através de um peddy-paper.

Plancas I e Plancas II são “a nossa praia”. Na verdade, são antigas dependências de uma grande e outrora bonita roça chamada Agostinho Neto, ou seja, são relativamente mais pequenas e trabalhavam para ela. Nas roças, agora desactivadas e com os terrenos divididos e entregues à população, produz-se cacau de forma mais ou menos “cooperativizada” e é disso e do que mais o campo der que as pessoas vivem. As pessoas são especialmente sujas e negligenciadas mas também especialmente receptivas e amáveis. Aí, estamos com as pessoas, entretemos as crianças e daremos formações. Acima de tudo, estamos com as pessoas.

Outras actividades de menor intensidade semanal são as visitas ao orfanato da Caritas na capital, em que as crianças normalmente lá entregues pelos próprios pais são autênticos brigadeiros à espera de um abraço e muita brincadeira, a animação de um grupo de jovens e da Adoração ao Santíssimo. Preparamos ainda, com a parceria da UNICEF, um mega campo de férias com o qual esperamos vir a alargar os horizontes de crianças e jovens de três roças, sensibilizando-os para a igualdade de géneros, gravidez na adolescência, exploração do trabalho infantil, entre outros temas.

Assim, nesta roda-viva imparável, já lá vão mais de 20 dias, muita saudade, algum sono mas muita muita alegria.

5 comentários:

  1. Maria do Rosário Mendonça22 de agosto de 2010 às 23:31

    Venho de novo felicitar-vos, pois estão num projecto em que o esforço e dedicação são enormes, no entanto é com certeza muito gratificante saber que estão a contribuir para uma causa notável e muito nobre.
    Um beijinho a todos t.zinha
    (Tia da Inês C.)

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  2. Meus queridos Grãozinhos!!!

    ...apesar de vos estar a acompanhar (via blog) desde que vocês partiram, ainda não me tinha dado ao luxo de vos dizer que vos ando a "espionar"!

    Fico muito contente que as coisas estejam a correr bem e que, mesmo com algumas(muitas) dificuldades, vocês estão felizes!

    Como vocês sabem eu nunca soube, na primeira pessoa, como é fazer voluntariado em África e é através de relatos como os do ano passado e como os vossos (e também do Cubal), que eu posso imaginar (um bocadinho) como é essa realidade.

    Por isso, aproveito para agradecer:
    - a vossa disponibilidade nestes 2 meses, para poderem plantar grãos em África;
    - a vossa disponibilidade ao longo do ano de preparação, para plantarem grãos em Portugal (que espero que possam ver germinar);
    - E as notícias que vão mandando para quem fica e que nos ajuda a conhecer outras realidades e a sonhar que nós também temos formas de contribuir!

    Beijinhos a todos,

    Joana Neto

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  3. OLA MEUS QUERIDOS!! Como estao?
    Tenho.me lembrado imenso de voces e ainda nao tinha tido oportunidade de mandar noticias.
    Por aqui tem sido uma experiencia muito intensa, a todos os niveis, e muito positiva tambem. calcuta tem MUITO que se lhe diga, e um mundo a parte!
    tenho rezado muito por voces! e ja falei de voces as irmas!
    espero que esteja tudo bem, ate portugal, um grande grande beijinho,

    Carminho

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  4. Olá, sou o pai da Raquel.
    Venho sempre aqui dar uma espreitadela.
    Vejo que trabalho e animação não faltam.
    Pois bem, aqui estamos nós sempre convosco em mente. Nunca se sintam sós.
    Sugestão: Uma foto dava outra cor ao blog :-)
    Um abraço
    Augusto Miranda (Tuta)

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  5. Quero dar-vos os PARABÉNS pela forma espectacular como todos vós têm descrito essa maravilhosa "experiência de vida" que estão a viver em S.Tomé. Ao ler o vosso Blog, as cartas ou os e-mails enviados, sinto alegria, orgulho e vontade de um dia fazer parte de uma missão. Sinto felicidade por saber que existem pessoas como vós, com muitas capacidades, mas principalmente com muito amor e alegria para partilhar com os outros. É uma honra conhecer-vos!Continuem sempre a enviar notícias e acreditem que desta forma, estão também a semear muitos grãos por cá...beijinhos para todos!
    Isabel Alegre

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